Crimes da ditadura como crimes contra a humanidade

25/06/2021

Ao condenar um agente da ditadura por crime contra a humanidade, sentença contribui para vigência efetiva da Constituição

  • EMILIO PELUSO NEDER MEYER
  • CRISTIANO PAIXÃO
  • MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA

25/06/2021 

Ato que marcou a implantação da ditadura militar no Brasil é lembrado por politicos e familiares das vitimas no prédio que abrigou o DOI-CODI. Crédito: Paulo Pinto/Fotos Públicas

Edgar de Aquino Duarte foi sequestrado, em 1971, por Carlos Alberto Augusto, conhecido como "Carlinhos Metralha", e outros agentes da ditadura de 1964-1985. Foi submetido a torturas e maus-tratos. Foi também mantido incomunicável em prédios do DOPS e do DOI-CODI de São Paulo, então comandado por Carlos Alberto Brilhante Ustra. Sua prisão teve motivação política e se deveu, principalmente, à colaboração do famoso Cabo Anselmo, um infiltrado da ditadura nos grupos de oposição armada. O sequestro de Edgar de Aquino Duarte permanece até hoje. Esse conjunto de fatos foi provado pela Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e por provas testemunhais e documentais produzidas em uma ação criminal que tramitou na 9ª Vara Federal de São Paulo.

É o que consta da sentença histórica exarada pelo juiz federal Sílvio César Arouck Gemaque, em um caso sem precedentes judiciais no Brasil. É a primeira vez em que uma sentença reconhece como crime contra a humanidade (no caso, o art. 148, § 2º, c/c art. 29 do Código Penal - sequestro qualificado) um ato praticado por agentes da repressão ditatorial. A decisão não só define o crime de sequestro como equivalente ao crime permanente de desaparecimento forçado, com base em precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal (STF) (Extradições 1.150 e 1.270), como o inclui no rol de crimes contra a humanidade que o Estado brasileiro deve investigar e, eventualmente, promover a persecução e julgar. Com isso, o crime não pode ser considerado prescrito e nem abrangido por anistia. Superou-se a incidência, no caso, da decisão do STF na ADPF 153, que reconhecera que a Lei de Anistia de 1979 também alcançaria agentes da repressão. A superação se deu em virtude da necessidade de se realizar não só controle de constitucionalidade sobre a matéria, mas também controle de convencionalidade. Com isso, seriam aplicáveis as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CteIDH) nos casos Gomes Lund e Herzog.

Há mais de um enfoque sobre a decisão do que aqui chamaremos de caso Edgar de Aquino. Um primeiro enfoque é processual e diz respeito à postura judicial trazida na decisão e no curso do processo penal. A segunda perspectiva é jurídica, abrangendo questões constitucionais e internacionalistas com efeitos importantes sobre a ordem jurídica brasileira. Uma terceira chave de leitura diz respeito aos efeitos exógenos da decisão e ela será trazida ao final.

Um processo penal levado a sério

Um aspecto deve ser ressaltado em relação ao caso: a prolação da sentença já é, por si só, um fato a ser celebrado.

Como sabemos, as Forças Armadas (FAs) nunca reconheceram sua responsabilidade na prática de graves violações a direitos humanos durante a ditadura, ainda que provocadas, por exemplo, pela Comissão Nacional da Verdade. Nunca formularam um pedido de desculpas. Nunca sequer lamentaram as mortes, desaparecimentos forçados e casos de tortura.

Isso gera um grande problema de ordem histórica. Sem uma mínima colaboração dos atuais integrantes das FAs (especialmente os oficiais superiores), que deveriam ter um compromisso inequívoco com a democracia e com os direitos humanos, o conhecimento das práticas autoritárias do período se torna mais difícil. Sem uma abertura efetiva de todos os arquivos dos órgãos da repressão - incluídos os secretos, extraoficiais, clandestinos - é necessário recorrer a outros caminhos institucionais para a busca da verdade histórica.

E para isso os processos judiciais são fundamentais. 

Os poderes instrutórios de um juiz que conduz um processo criminal são amplos e variados. Testemunhas podem ser inquiridas mediante compromisso com a verdade, provas técnicas podem ser produzidas, documentos podem ser requisitados, inspeções podem ser realizadas. Para decidir, um juiz precisa fundamentar seu entendimento no conjunto probatório e deve responder a demandas formuladas pelos litigantes.

Por essa razão, grandes avanços ocorrem no campo da justiça de transição quando processos judiciais são ativados. Em vários países que enfrentavam o legado da ditadura, a atuação do Judiciário foi essencial.

Temos a tendência de pensar em processos como instrumentos de aplicação do direito, o que é correto. Mas há outros usos e possibilidades para o teor de informações e alegações que circulam em feitos judiciais: eles são também fontes históricas.

E aqui se localiza um elemento importante para a concretização do enfrentamento do passado autoritário. As violações de direitos humanos possuem uma dimensão intergeracional. Famílias inteiras foram afetadas pelos atos de exceção: o convívio de um filho com seus pais é suprimido, etapas de crescimento e desenvolvimento de uma criança não podem ser acompanhadas, vínculos são rompidos e, com isso, são criados traumas, dilemas e sofrimentos. Os processos judiciais têm uma relação diferente com o tempo, reconstruindo contextos fáticos, voltando sua atenção para acervos documentais e testemunhos, superando qualquer limitação por meio da construção jurídica da imprescritibilidade (nos crimes contra a humanidade). Desse modo, as instituições do sistema de justiça cumprem papéis múltiplos. Elas prestam jurisdição penal responsabilizando agentes que violaram direitos, contribuem para o conhecimento da história do período autoritário e, ainda, podem ser órgãos de reparação, na medida em que sobreviventes e descendentes das vítimas se colocam na condição de destinatários de uma restituição textual dos fatos ocorridos, a partir de um processo em que são (ou devem ser) respeitadas as garantias constitucionais aplicáveis a todos os litigantes.

Desse modo, a sentença do caso Edgar de Aquino se soma a uma série de iniciativas do Ministério Público Federal (MPF) no âmbito do Grupo de Trabalho sobre Justiça de Transição. As medidas remontam a uma resolução da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, de 2011, que se posicionou no sentido de que a decisão do STF na ADPF 153 não obstava o exercício de um controle de convencionalidade e, portanto, o cumprimento da decisão da CteIDH no caso Gomes Lund. Com efeito, ao passo que o STF decidira, em abril de 2010, que a Lei de Anistia não poderia ser interpretada no sentido de excluir a possibilidade de punição de agentes da ditadura por crimes do período, a CteIDH, em novembro do mesmo ano, opôs-se no sentido de definir que os crimes ocorridos na ditadura e, principalmente, no contexto da Guerrilha do Araguaia, mereciam investigação e punição por se constituírem como graves violações de direitos humanos.

A partir dali, vários procedimentos criminais e inquéritos foram instaurados, assim como, cerca de 50 ações criminais ajuizadas - Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG mantém um banco de dados dessas medidas. Ocorre que a maioria das denúncias foram rejeitadas ou, quando seguiram adiante, foram suspensas por meio de reclamações junto ao STF que teriam em mira fazer cumprir a decisão na ADPF 153. Ocorre que este acórdão até hoje não transitou em julgado e, mais, foi ainda ajuizada a ADPF 320 para que o Supremo se posicionasse sobre o julgado da CteIHD em Gomes Lund. Sucessivas presidências, contudo, se refutam a pautar os processos.

A decisão no caso Edgar de Aquino coroa a litigância estratégica do MPF. Ao invés de simplesmente obstar o prosseguimento do processo utilizando o controverso (senão inconstitucional) precedente da ADPF 153, o juiz federal Sílvio Gemaque recebeu a denúncia considerando a gravidade dos crimes contra a humanidade objeto da acusação. Permitiu, ainda, ampla dilação probatória, ouvindo várias testemunhas, considerou diversos documentos, entre eles, relatórios de comissões da verdade e mesmo entrevista concedida pelo acusado ao jornalista Percival de Souza.

Esse "mosaico probatório", nas palavras do juiz federal Sílvio Gemaque, é que permitiu concluir pela responsabilidade penal.

Crimes contra a humanidade no Brasil

Em uma perspectiva adicional, a decisão do caso Edgar de Aquino é também o fruto do reconhecimento judicial do trabalho do MPF, permeado, nessa seara, pela pressão de familiares de opositores e vítimas da ditadura de 1964-1985, bem como de entidades da sociedade civil. É o reconhecimento de que os crimes da ditadura e, em especial, o crime de desaparecimento forçado, são crimes contra a humanidade.

Este é um paulatino trabalho de incorporação de um conceito do Direito Internacional dos Direitos Humanos no constitucionalismo brasileiro. Remontando ainda ao genocídio armênio, a expressão consolidou-se com o Tribunal de Nuremberg e com diversas normativas apontadas na sentença aqui comentada - a título de exemplo, o Relatório da Comissão de Direito Internacional da ONU de 1954, e as Resoluções 2.202 de 1966, 2.338 de 1967, entre outras. Esses atos normativos já eram vigentes à época dos fatos do caso Edgar de Aquino e só foram declarados por disposições como o Estatuto de Roma. Cuida-se de normas de jus cogens que estabelecem obrigações erga omnes. Os crimes contra a humanidade são ataques generalizados e sistemáticos contra parcela da população civil. O caráter sistemático da repressão ditatorial já fora reconhecido pela Comissão de Anistia, pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade, pelo MPF no parecer do então procurador-geral da República Rodrigo Janot na ADPF 320, pelo voto do ministro Edson Fachin na Extradição 1.362, por decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) no caso Inês Etienne Romeu e pelas decisões da CteIDH em Gomes Lund e, principalmente, Herzog.

Essa lógica implica uma aprendizagem institucional que já alcançou o MPF e que pode se estender ao Poder Judiciário brasileiro. Trata-se, para além da consolidação de uma base para um rule of law internacionalista, da adequada interpretação do que significou a anistia na transição para o regime democrático pós-1988. Nem a Emenda Constitucional 26/1985 nem o art. 8º do ADCT da Constituição de 1988 possibilitaram a anistia de crimes contra a humanidade.

Para além dos autos: efeitos secundários da decisão

Deve-se considerar, contudo, que a decisão tem, ainda, importantes efeitos para além do que foi decidido intra processualmente. Há consequências no plano do exercício do direito à memória e à verdade, uma vez que a decisão projeta, para além do trabalho de comissões da verdade e da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, efeitos de memorialização que podem ser atingidos pela coisa julgada. Em outras palavras, é a consolidação (jurídica e judicial) de que os crimes da ditadura são crimes contra a humanidade. Estes efeitos impulsionam pautas importantes e inacabadas da justiça de transição brasileira.

Além disso, a decisão do caso Edgar de Aquino já impõe efeitos sobre a relação entre autoridades militares e civis no arcabouço institucional brasileiro.

A militarização da política ocorrida, no Brasil, ao menos desde 2016, conecta-se à ausência de accountability pelos crimes perpetrados na ditadura. Com efeito, a visão de que as Forças Armadas teriam melhores condições políticas e administrativas para se engajar em políticas públicas é assentada na fantasia de que seus membros não teriam cometido e nem cometeriam crimes; a decisão judicial mostra justamente o contrário.

Não se cuida apenas da prática de crimes comuns praticados por outros indivíduos (como os de corrupção), mas de crimes da mais elevada gravidade, assim reconhecidos por cortes como os Tribunais de Nuremberg e Tóquio, além dos Tribunais Penais Internacionais para Ruanda e para a ex-Iugoslávia.

A decisão do caso Edgar de Aquino, além disso, reposiciona a relação entre o Poder Judiciário brasileiro e as FAs, relação essa mal resolvida na ADPF 153. Some-se também o fator de que, ante um governo amplamente militarizado e apoiado pelas FAs, a necessidade de lidar com uma pandemia também pode já ter configurado as condições necessárias para se investigar a prática de crimes contra a humanidade de extermínio, em relação à população geral, e genocídio, em relação à população indígena. A situação que ora se desenha de uma política de exposição ao vírus da COVID-19 para uma almejada imunidade de rebanho é algo que demanda ampla investigação e eventual punição dos gestores públicos envolvidos.

Isto não é pouco. Trata-se de um passo muito importante, mas que, ainda, depende da consolidação dos efeitos da coisa julgada e de se instituir como um precedente a ser seguido.

Uma última observação é necessária em relação ao contexto atual. Vivemos uma situação em que práticas desconstituintes, ou mesmo um dirigismo (in) constitucional invertido contrário a direitos e garantias individuais e sócio-econômicos, norteiam a atuação dos agentes estatais, especialmente do Poder Executivo. 

Essas atitudes de esvaziamento e, por outro lado, de tentativa de inversão fraudulenta de sentido do texto constitucional, de desativação seletiva de salvaguardas individuais e sócio-econômicas estabelecidas no próprio ordenamento jurídico, enfim, de erosão constitucional, se estendem ao campo da justiça de transição. 

O art. 8º do ADCT é muito claro ao designar como "atos de exceção" aqueles praticados por perseguição política, de que são exemplo as violações a direitos humanos, cometidas por agentes da ditadura. São práticas que não podem ser toleradas no presente - como a apologia à ditadura, a comemoração de datas do regime em instalações militares e a designação de nomes de pessoas ligadas ao passado autoritário para ruas, praças e logradouros públicos. Ao determinar a condenação de um agente do regime ditatorial por crime contra a humanidade, a sentença proferida pelo juiz Silvio César Arouk Gemaque também contribui para a vigência efetiva da Constituição de 1988. E, exatamente por isso, a decisão judicial é portadora de uma mensagem de compromisso com os direitos humanos e com a democracia.

Ao resultar da apuração de fatos de um passado traumático e difícil, a sentença, proferida no tempo presente, abre uma perspectiva democratizante para o futuro.