A ilusão é tanto eficaz dependendo da capacidade de difusão de quem a conta.

12/08/2021

 Bolsonaro sugere o uso de produto do chamado 'kit covid'

Leonardo Sakamoto- Colunista do UOL

11/08/2021 17h24

O faturamento da Vitamedic com a venda de ivermectina, usada erroneamente no tratamento da covid-19, saltou de R$ 15,7 milhões, em 2019, para quase R$ 470 milhões no ano passado. O laboratório deveria ser grato e mandar umas latas de leite condensado a Jair Bolsonaro, garoto-propaganda do produto. Se foi um trabalho voluntário ou não, é a CPI da Covid quem deve investigar.

O laboratório admitiu que não fez estudos para atestar a eficácia do produto (originalmente contra sarna, vermes e piolhos) contra a covid, mas, mesmo assim, gastou R$ 717 mil em anúncios que defendiam a mentira de que tratamento precoce com ivermectina funciona.

Isso é mais uma evidência de que a sabotagem perpetrada pelo presidente da República nas medidas de combate à doença (ridicularizando vacinas, atacando isolamento social, promovendo a fraude do kit covid) permitiu que muita gente faturasse um bom cascalho. Em outras palavras, que fizesse da morte em massa um bom negócio. Em depoimento à CPI da Covid, nesta quarta (11), Jailton Barbosa, diretor da empresa, reconheceu aumento de 60% no preço do medicamento. Credita a elevação à variação no dólar e ao crescimento de custos internos relacionados à pandemia. E afirmou que não vendeu o produto ao Ministério da Saúde, mas despejou diretamente nas prefeituras. 

 No final, mesmo com as desculpas, ficou claro que a empresa sabia estar lucrando em cima de um naco da população que acredita que o remédio evita mortes. Essa crença levou muita gente a procurar atendimento médico só quando era tarde demais

Essa expansão comercial contou com uma ajudinha. O presidente Jair Bolsonaro atuou como garoto-propaganda informal do uso do vermífugo da Vitamedic, recomendando-o em lives e em entrevistas, para o tratamento da covid-19. O então Ministério da Saúde do general Eduardo Pazuello chegou a enviar terraplanistas biológicos para pressionar a Prefeitura de Manaus a distribuir hidroxicloroquina e ivermectina. E deixou de monitorar um insumo que realmente faria a diferença, o oxigênio. Com isso, uma catástrofe atingiu a cidade e muitas pessoas morreram sufocadas.

Na esmagadora maioria dos casos, nosso sistema imunológico é capaz de dar conta da doença, produzindo anticorpos e eliminando o coronavírus. 

Ao apontar um remédio ineficaz como solução para casos leves, o presidente, na verdade, tenta roubar o mérito por algo que o organismo já faria por conta própria. 

E isso cola em uma parte desavisada da população. 

Afinal, o que tem mais a cara de ser responsável por vencer uma guerra contra uma doença mortal: estruturas microscópicas que cada um tem dentro de si, os glóbulos brancos, ou um produto milagroso distribuído com pompa e circunstância pelo sistema de saúde que é alvo de elogios semanais do presidente em suas lives?

"Ah, mas tem os que morrem? Bem, como o próprio Jair diz sempre, todo mundo morre um dia."

A questão é que a ivermectina também tem efeitos colaterais, como foi bem lembrado na CPI da Covid. E pessoas tiveram problemas no fígado por conta do uso de um medicamento receitado, de forma charlatã, pelo presidente da República. O que levou a um laboratório a faturar centenas de milhões de reais.

A Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Organização Mundial de Saúde (OMS), ou seja, quem representa o pessoal que está na linha de frente, afirmam que não há tratamento precoce contra a covid.

Até a Merck, empresa farmacêutica que produziu inicialmente a ivermectina, divulgou um comunicado afirmando que seus cientistas procuraram, mas não encontraram evidências que justificassem o emprego do medicamento no tratamento da covid-19. 

Atribui-se a Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista, a ideia de que uma mentira repetida várias vezes se torna verdade. Ou, como dizem os psicólogos, uma ilusão da verdade. 

A ilusão é tanto eficaz quanto a propensão de grupos de nela acreditarem. E, claro, da capacidade de difusão de quem a conta.

 Propagada por um presidente da República, a mentira pode se tornar onipresente. A ponto de ser encarada como mais um detalhe na paisagem. Assim como a morte, em uma pandemia, em um país sem governo.