A PEC 32 enviada pelo governo ao Congresso Nacional implodirá o pouco que resta de um Estado orientado a atender o cidadão e abrirá os portões para a colonização da esfera pública por indicados políticos e emissários da elite econômica
A justificativa do governo de que busca, com a Reforma Administrativa, aperfeiçoar e dar eficiência ao serviço público não conversa com o escopo da proposta. Na realidade, a PEC 32 enviada pelo governo ao Congresso Nacional implodirá o pouco que resta de um Estado orientado a atender o cidadão e abrirá os portões para a colonização da esfera pública por indicados políticos e emissários da elite econômica, a mesma que anda reclamando uma reforma mais "robusta", em cafés com o ministro da Economia, Paulo Guedes.
O discurso desse pessoal do andar de cima, que conta com muita bala na agulha para convencer alguns parlamentares de suas "razões", é de que a saída para todos os problemas fiscais do país passa por cortes profundos nos gastos públicos, independente dos efeitos indesejáveis de privar a sociedade de um Estado que a atenda minimamente.
Há nesse argumento um claro conflito de interesses, uma vez que o caminho alternativo para resolver o déficit fiscal seria pelo lado das receitas.
Em outras palavras, cobrar os impostos como se deve dos grandes contribuintes e reduzir os inúmeros benefícios fiscais, verdadeiros privilégios tributários sem justificativa do ponto de vista social e macroeconômico que sangram o país em centenas de bilhões de reais por ano.
Alegar que o teto de gastos, aprovado no governo de Michel Temer, impede tal solução seria estreiteza de visão ou esperteza mesmo, porque não se pode ver a proposta da reforma administrativa isoladamente. Na verdade, ela se trata de mais uma etapa de uma agressiva estratégia ideológica de anular o papel do Estado na sociedade como ente regulador, fiscalizador e provedor de serviços públicos, que começou com a PEC 95, que criou essa restrição orçamentária.
Dito de outra maneira, ao criar o teto dos gastos, a arrecadação se tornou um componente secundário. Na visão míope dos orçamentistas do governo, não adianta arrecadar, se não se pode gastar. E com isso, a elite se protege de medidas que possam alcançar o topo da pirâmide, como tributar os lucros e dividendos, as remessas de lucros ao exterior, os juros sobre capital próprio, equalizando assim a tributação sobre a renda do trabalho e do capital. No campo do patrimônio, estabelecer um imposto sobre herança progressivo e incluir jatinhos e iates de luxo no IPVA. Só com esse último imposto, o governo arrecadaria quase R$ 5 bilhões por ano.
A reforma administrativa joga a conta do déficit fiscal sobre as costas do servidor público. A depender da proposta original do Governo, exclusivamente sobre o servidor do Executivo. Já a reforma tributária, se conduzida na direção da justiça fiscal, inevitavelmente alcançaria a elite econômica, mesmo em alto-mar.
Mas a reforma administrativa tem outros componentes. O aspecto ideológico é um deles. Há uma clara preferência de massacrar o funcionalismo público como vilões da nação, como se todos os problemas do país decorressem das despesas com os servidores. Na verdade, é uma ideologia antiestado. O movimento foi iniciado fortemente no governo Temer, com o discurso de que o servidor público ganha muito, trabalha pouco e se aposenta cedo. O atual governo aprofundou essa narrativa com as declarações agressivas do ministro da Economia, classificando os servidores de parasitas, campanha que recebe amplo apoio da elite do país, justamente a classe social que pouco depende dos serviços públicos.
Há ainda o componente econômico-financeiro, de interesse de diversas corporações empresariais que querem prestar serviços no lugar do Estado. Os setores da saúde e da educação são apenas dois exemplos de mercados bilionários em que os lobistas estão de olho. Para esses grupos empresariais, em vez de cidadãos, teremos clientes, e quanto menor o Estado, maiores serão os seus lucros.
Esses são os interesses que estão por de trás da reforma administrativa.
Mas há ainda os efeitos colaterais irreversíveis de que pouco ou quase nada se fala, que advirão, com certeza, da reforma administrativa. Não há, por exemplo, garantias na PEC 32, de que serão mantidas certas carreiras como típicas de Estado, como a dos auditores fiscais da Receita Federal. O que há são muitos rumores. As novas regras para a demissão por insuficiência de desempenho serão definidas por lei ordinária, alterável por medida provisória. Uma fragilidade terrível.
Foi criada, ainda, a figura do vínculo de experiência, período pelo qual o concursado, ainda não investido no cargo, será uma espécie de trainee, exposto a todo tipo de assédio laboral e de influências políticas, antes de ser efetivado. É uma distorção enorme do instituto do concurso público, uma instituição que não merece ser reformada, porque funciona.
Esse equívoco da PEC 32 ilustra bem que a equipe econômica parte de um diagnóstico errado e o quão desconhece a máquina pública.
Há ainda na PEC 32 a figura do cargo de liderança, que poderá ser ocupado por indicados do Governo, e não por servidores de carreira. Diferente dos cargos em comissão criados para funções de direção e assessoramento, essa nova figura funcional será também para funções técnicas, gerencias e estratégias dos órgãos, o que traz enorme preocupação, já que essas nomeações podem sofrer interferência econômica, política ou partidária. Tudo que o país não precisa numa reforma administrativa.
Essas figuras juntas - a fragilização da estabilidade, o vínculo de experiência e o cargo de liderança - tornarão o Estado Brasileiro, União, Estados e Municípios, muito mais porosos e suscetíveis a influências políticas, deixando a sociedade à mercê das idiossincrasias dos Governos de plantão, que com muito mais facilidade poderão povoar a Administração Pública com seus militantes. Teremos país afora várias versões dos "Guardiões do Crivella", só que a nível nacional.
Nessa engrenagem e pelos interesses envolvidos, não se vê nenhum interesse genuíno em melhorar a prestação de serviço público. Para reforçar esse ponto de vista, basta se dar conta de que, ao enviar a PEC 32 para o Congresso, o governo não incluiu os membros do Legislativo e do Judiciário, onde estão justamente grande parte das distorções a serem enfrentadas. Poupou ainda, integralmente, as Forças Armadas. Se aliviou para esses poderes, pesou a mão justamente no Poder Executivo.
Do ponto de vista da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), não há qualquer justificativa para o terrorismo dos números alardeados por parte da imprensa, reverberando sem crítica números fantasiosos criados por grupos ligados à elite interessada na Reforma e pelo próprio Governo. Embora haja problemas em alguns Estados, a União está com as contas dentro dos trilhos da LRF, principalmente o Executivo Federal. O limite de despesas com pessoal estabelecido é de 37,9% da receita corrente líquida da União, e o Executivo jamais passou dos 30%.
No fundo, o que está em disputa é o orçamento da União, em razão do teto dos gastos, da crise fiscal decorrente da pandemia, assumida pela União, e do interesse da elite econômica de esquivar-se de qualquer participação nessa conta do ajuste fiscal. Guedes, se quisesse de fato uma Administração Pública mais eficiente, deveria tomar café também com representantes de outros segmentos sociais, como o do funcionalismo público. Enquanto isso não ocorre, esperamos que o Congresso permita um debate público honesto e transparente sobre uma reforma de enorme envergadura e com profundos impactos sociais, que poucos se dispõem a falar.